História
O Grupo Sportivo Adicense: A Longa Vida de um Clube que Nasceu com Alfama no Coração
Há histórias que se confundem com lugares. Há instituições que sobrevivem ao tempo porque pertencem mais às pessoas do que às paredes que as abrigam. O Grupo Sportivo Adicense, fundado há mais de um século no interior do bairro de Alfama, é uma dessas raras entidades. A sua memória vive nas ruas, nas vozes, nos becos e nas janelas antigas; vive nos moradores que ainda recordam o cheiro das tabernas de outrora, o rumor das tardes de verão no Tejo, ou a música que ecoava nos pátios e escadinhas. Para muitos, falar do Adicense é falar de Alfama, e vice-versa.
1916: A génese de um sonho
A história começa a 26 de janeiro de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, num tempo em que Lisboa se transformava lentamente. Enquanto a cidade se expandia, Alfama continuava a ser um bairro de condições modestas, ruas estreitas e vida dura marcada pelo rio e pelos ofícios antigos. Foi nesse cenário que Nuno Barbosa, Oficial da Marinha, idealizou algo novo para a juventude local: um espaço de formação, disciplina e convivência.
A sede inicial ficava na Rua Norberto de Araújo, 19-A, junto às encostas que descem para o rio. Eram poucos metros quadrados, mas neles cabia uma visão abrangente: criar um clube que servisse Alfama não apenas como ponto de encontro desportivo, mas como verdadeiro refúgio comunitário. Ali nascia o Adicense.
Os primeiros talentos: quando Alfama exportava campeões
O clube cresceu rapidamente e cedo se tornou escola de atletas. Nos anos 1920 e 1930, enquanto o associativismo desportivo florescia em Lisboa, o Adicense ajudou a formar dois nomes que fariam parte da história do futebol português:
- Pedro da Conceição, guarda-redes que viria a brilhar no Sport Lisboa e Benfica;
- Mariano Amaro, que não só se afirmou no Clube de Futebol “Os Belenenses”, como se tornou internacional e símbolo do futebol nacional.
Era a demonstração clara de que, apesar de ser um clube de bairro, o Adicense tinha ambição, método e capacidade para formar desportistas de excelência.
Pioneirismo nacional: ginástica infantil e ténis de mesa
Mas os feitos do clube não se limitavam ao futebol.
Uma crónica desportiva de 6 de outubro de 1957 (Crónica Desportiva nº26) regista que o Adicense foi o primeiro clube em Portugal a abrir uma classe infantil de ginástica, e que a primeira lição foi dada por ninguém menos do que o Dr. Salazar Carreira, autoridade máxima da educação física no país.
Pouco depois, em 1932, o clube integraria o grupo fundador da Associação de Ping Pong de Lisboa, origem da atual Associação de Ténis de Mesa de Lisboa e precursora da Federação Portuguesa de Ténis de Mesa. Este passo foi determinante para a expansão da modalidade na cidade.
Ao longo das décadas, os atletas do Adicense acumulam títulos, entre os quais:
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- Campeões de Promoção (1948–49); -
- Álvaro “Tátá” Fernandes, campeão individual da III Divisão (1942–43).
Não se tratava apenas de competir: o clube ajudava a moldar a própria história do ténis de mesa em Portugal.
O Tejo, palco inesquecível: a epopeia da natação adicense
Se há capítulo verdadeiramente épico na história do Grupo Sportivo Adicense, ele nasceu no Rio Tejo. Durante cerca de quarenta anos, o clube manteve um dos mais respeitados postos náuticos de Lisboa, situado na Doca do Jardim do Tabaco. Ali funcionava a famosa escola de natação do Adicense.
Entre 40 a 50 novos nadadores por ano completavam ali a sua formação, sob orientação do instrutor diplomado Carlos Fernandes Guedes. Muitos eram crianças de Alfama que viam no clube a oportunidade de aprender a nadar pela primeira vez.
As competições multiplicavam-se, e com elas vieram conquistas que ficaram registadas na imprensa da época:
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- A Taça Século, na categoria de Populares, vencida pelo nadador Manuel Lopes; -
- A Taça Príncipe da Beira, troféu de prestígio para a categoria de Infantis, que o Adicense conquistou quatro vezes consecutivas (1953–1956) — garantindo assim a posse definitiva da taça.
O auge da vida náutica do clube era o Festival Náutico anual, realizado em colaboração com o jornal Mundo Desportivo. As margens enchiam-se para ver as provas aquáticas, os saltos, as competições e, sobretudo, a célebre demonstração do “Pau de Sebo”, que divertia multidões e se tornava ponto alto das tardes de verão.
Com o passar dos anos, contudo, a degradação da qualidade das águas do Tejo tornaria a prática impossível. A escola de natação encerra nos anos 1980, não sem que antes deixasse uma marca indelével no desporto lisboeta.
Cultura e identidade: a alma que não se ensina
Se o Adicense fosse apenas um clube desportivo, já teria a sua história assegurada. Mas o que o distingue verdadeiramente é o seu papel cultural e social. Muito antes de Alfama ser o destino turístico que é hoje, o Adicense era já palco de:
- Grupos cénicos com peças de teatro e récitas;
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- Uma biblioteca com cerca de 500 volumes, que para muitos foi a primeira porta de acesso à leitura;
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- Noites de fado, tão espontâneas quanto autênticas, que marcaram gerações.
Ali, a música erguia-se como ponte intergeracional: moradores, marinheiros, trabalhadores do porto, fadistas amadores e visitantes ilustres partilhavam a mesma sala, a mesma emoção.
O Adicense era — e ainda é — um dos depositários da herança fadista de Alfama.
O Adicense hoje: entre a tradição e a modernidade
Atualmente, o clube oferece modalidades que continuam a atrair jovens e adultos:
- Boxe, que ganha crescente destaque;
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- Ginásio, com prática regular e acompanhamento;
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- Futsal, que renova a tradição futebolística do clube;
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- Pesca desportiva, com ligação histórica ao Tejo;
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- E continua a promover iniciativas culturais, incluindo o Fado, garantindo que o espírito do bairro permanece vivo.
O Adicense é hoje uma instituição centenária em plena vitalidade, cuja missão se mantém intacta: servir Alfama, formar pessoas, criar comunidade.
Mas o Adicense, também projeta-se para o futuro, abraçando novos desafios, e talvez até algumas novas modalidades...
Mais do que um clube, uma memória viva
O Grupo Sportivo Adicense não se define apenas pelo passado glorioso, mas pela capacidade de permanecer atual sem trair a sua identidade. É o testemunho vivo de como o associativismo pode moldar vidas, unir gerações e preservar tradições que fariam falta à cidade se algum dia se perdessem.
Mais do que um clube, o Adicense é uma casa — a casa que Alfama construiu para si mesma.
E enquanto houver quem suba e desça as suas escadas, quem cante fado nas suas salas, quem vista as suas cores vermelho e branco, quem treine ou quem simplesmente conviva sob o seu teto, o Adicense continuará a cumprir a promessa que fez em 1916:
... ser a alma de um bairro que nunca deixou de acreditar na força da comunidade.